sábado, 31 de janeiro de 2009

Introdução

Acordo em com uma ressaca abominável, sento na privada para defecar objetos enquanto sondo o ambiente toalético em busca de algum maço de cigarro que satisfaça as duas condições básicas de uma manhã como esta: que não esteja vazio, e que esteja ao alcance de minhas mãos. Sou feliz e taco fogo. Os isqueiros em minha casa são mais promíscuos do que uma orgia do Calígula, é aquela velha lei da conservação da matéria: o mundo inteiro reclama que os isqueiros somem, os meus se multiplicam. Sou uma espécie de Ladrão Kármico. Na sua época talvez já existam leis contra este tipo de abuso.

O bidê é meu amigo. Em primeiro lugar, você leva o dobro do tempo que leva pra cagar para se limpar a seco; em segundo, você tem uma escarradeira maior do que a do seu tataravô e num lugar mais apropriado; e, em terceiro lugar, você não precisa de cinzeiro no banheiro. Nem uma prostituta russa com duas gramas de cocaína colombiana me seria mais útil do que um bidê numa manhã como estas. Mas ainda assim, eu trocaria o bidê pela prostituta com muito carinho porque seria assim uma manhã mais estilosa.

Felizmente, o sonho foi claro. Costumam perguntar por ai “ei, você sonha?” quando é óbvio que sim, a menos que eu sofra de algum distúrbio muito avançado que faria as enfermeiras que acompanhassem meus monitores durante uma polissonografia entoarem cânticos satanistas vestidas de inquisidoras.

A questão é se você lembra de seus sonhos. Porque são horas deles, e, para alguém como eu, não lembrá-los seria como sair por aí perguntando pra suas próprias facetas projetadas no reino de Morpheus se elas viram por aí o controle remoto da sua televisão no mundo que vocês chamam de deserto do real e, eu, de harém do capital. São centenas de horas que vocês irão viver inconscientes, meus filhos, e, por isso, façam bom proveito.

O Primeiro Sonho [29/01/2009]

A Cidade dos Fins

Num pub cartesiano, de nome “Meditação Quarta”, no tranqüilo subúrbio (em clara homenagem ao verso de Horácio bene vixit qui bene latuit, inscrito na lápide do Francês falecido) da maior Cidade do Império Racionalista, um círculo dialético de ébrios homens livres discutia, em homenagem ao aniversário da fundação do pub, a questão do verdadeiro e do falso.

Partiam, obviamente, do Cogito (ergo sum) cartesiano: Penso logo existo, mas isso nada prova a respeito da natureza corpórea, pois os sentidos podem sempre nos enganar; o que significa que a primeira certeza que um homem pode ter é sobre seu espírito. Neste ponto, o homem só sabe que existe e que duvida. Isso prova que ele não é perfeito, e a própria noção que tem de sua imperfeição prova a noção impressa de algo perfeito, de algo infinito em oposição a sua finitude (por uma questão de equivalência entre realidade formal e objetiva que empiristas posteriores comparariam a magia negra), dentro de nós. Este Modelo, este Infinito Perfeito não pode deliberadamente nos enganar pois isso denotaria imperfeição de sua parte. No entanto, nós nos enganamos.

Um estrangeiro feio conduzia a discussão:

Ele dizia: Permitam-me retomar a questão para que fique claro se estamos de acordo. Se Deus não nos deu um Poder para nos enganarmos, como, de fato, nos enganamos?

Ao que respondeu outro, um dogmático pouco sério sarcasticamente apelidado de
Philonous: Isto é porque o erro não está em nós. Nós fazemos parte do ser e do não-ser, e o erro não está em nós porque, propriamente, não está em lugar algum. Ele não é. A Questão é que nosso poder deliberativo, nossa Vontade, são infinitos, à maneira da Vontade do Criador. No entanto, nosso poder de discernimento, nossas faculdades intelectuais, são mui imperfeitas. De maneira que o erro poderia não ser uma ignorância passiva, mas uma ignorância ativa, mais que uma negação, uma privação.
Justamente o acorrentado ignorante-ingênuo da caverna, que toma as sombras por Essências.

E um terceiro, grande e inseparável amigo do primeiro, o que acabou por lhe render a alcunha de Hylas, acrescenta: Além do mais, como nossas faculdades não se comparariam às de Deus, nosso erro, de sua perspectiva, pode não o sê-lo.

Philonous: Exatamente.

Mas o estrangeiro não parecia satisfeito: e como isso isenta Deus da culpabilidade pelos nossos erros? Seu mais forte argumento é essa apelação metafísica à incompreensibilidade do infinito?

Hylas parece ofendido, levanta e prepara-se para uma boa e bela briga de bar. Mas Philonous gesticula para que ele se controle e Hylas é um bom amigo.

Philonous: Permita-me, caro estrangeiro. A faculdade do entendimento não toma decisão alguma, ela pode até deliberar sobre causas, mas não pode ser uma causa. Pode deliberar sobre conseqüências, mas não causá-las. E a imperfeição reside justamente nela, que não pode ser causa de nada e, portanto, não pode a ser fonte de erro. O erro provém justamente de nossa parte mais perfeita, o livre-arbítrio; é ela que principalmente nos faz reconhecermo-nos à imagem do Criador, pois é o poder absoluto do sim e do não. A Vontade é livre, e livremente sai de sua indiferença e mete-se precisamente aonde o entendimento não alcança, ou por impossibilidade ou por ignorância. E neste momento, livremente e naturalmente, decide tomar o falso pelo verdadeiro. Mas entenda que este erro, ou todos os erros, podem ser facilmente evitáveis se você não deliberar sobre o que não entende.

Ao que responde o estrangeiro: Entendo. Isto tem alguma coisa a ver com aquele feriado internacional do Império, a Semana da Dúvida, na qual vocês estabelecem como falso tudo o que for sujeito à dúvida e só fazem aquilo que, com seus próprios aparatos intelectuais, conseguem ter com clareza e certeza como verdadeiro e certo?

Hylas: Sim. Ninguém até hoje conseguiu sustentar durante esta semana santa a existência da substancia corpórea, que permanece em indiferença.

Alguns murmúrios ecoavam dentro da sala, este era um assunto tão sério quanto seria a virgindade da Maria madalena se alguém levasse a sério os apócrifos.

O Estrangeiro: Isto quer dizer então que, pra vocês, o erro é voluntário, pode ser evitado facilmente e, assim, Deus é isentado de culpa pelos nossos erros (ainda que não fossem erros de sua perspectiva...)?

Philonous: Não é tão simples assim. Depois de anos examinando o desenrolar dos eventos da Semana da Santa Dúvida, chegamos à conclusão de que sim, que isto somente é verdadeiro na exata proporção de desculpar Deus de nossos Erros. Mas é bem difícil, as pessoas não conseguem conversar, alguns mal conseguem abrir os olhos, muitos morrem de fome. No entanto, é uma Semana que nos purifica e nos prepara para o mundo civilizado, que nos obriga a tomar decisões a respeito de coisas que não entendemos.

O Dono do Bar interrompe-os e diz:

E é com esse objetivo que o pub foi fundado, justamente. O objetivo de evitar o erro e promover o conhecimento da verdade; aqui alguns dos mais elevados intelectos de nossa gente reunia-se, em número pequeno, para um grande número de cervejas, durante a Semana, mostrando quão longe conseguiam ir em certeza objetiva e incontestável. Fala-se por aí de um cego com uma máscara solar cuja clareza e objetividade de seus pensamentos era tanta que ele chegou a sentar em um dos bancos e tomar um porre. Mas não sabemos quem foi, pois ele nunca se revelou e nenhum de nós estava lá para ver. Só encontramos algumas garrafas vazias e rastros de seu vômito. E, aparentemente, ele mijou na pia. E Deixo a porta aberta em deferência a estes sábios, ou talvez este.

E eis que entra o Professor de Solipsística Quântica, Dr. Hans:

Eu assumo. Eu consegui. Eu que mijei na sua pia. Peço desculpas, tinha certeza de que era uma privada. Talvez não tanta clareza, eu admito. Mas certeza eu tinha.

O bar fica inquieto, sangue é derramado e Hans é expulso da cidade dos fins. A barulheira toda do bar revela-se a da máquina de lavar. A faxineira chega para fazer seu trabalho em meu apartamento e eu acordo.

O Primeiro Dia de Normal [29/01/2009]

Conversei sobre assuntos irrelevantes, puxei assuntos desinteressantes e sonambulei por entre os pastores do ser que mais me parecem híbridos de ovelhas com formigas coletoras de material para alimentar o fungo de seu formigueiro. Os normais. Nada digno de literatura. Terei de esperar até o próximo sonho.

O Segundo Sonho

Dentro da casa, como de costume, Nietzsche corria atrás de Kant com uma espada gritando ‘porque O matas-te? Porque, homem!’ e Kant, ainda semi-atado pelas cordas que o prendiam enquanto dormia (para garantir que permanecesse na posição perfeita por toda a noite), lamentando-se em voz alta ‘estão vendo, é por isto que eu digo que não há nenhuma garantia de nossa liberdade sem a formalização jurídica do que é certo, pois veja, esta criança ex-antropomórfico de camelo e leão que mata o dragão, sai por aí, uber-livre, porque não temos código jurídico por aqui!’.

Bruno conversava com Cardano e Porta. Discutiam a procedência do corpus hermeticum, no jardim, enquanto Descartes e Galileu troçavam de Francis Bacon e Guilherme de Occam porque o progresso tecnológico havia provado a excelência do a priori sobre o empirismo puro dos dois pobres coitados.

Berkeley, em vias de overdose de água de alcatrão, batia na porta do toalete incessantemente na vã tentativa de apressar Arquimedes para fora da banheira.

Eu acordo.
O Segundo Dia de Normal [30/01/2009]

O tédio. Talvez ninguém se sinta normal. Talvez não olhem em volta e vejam como se parecem entre si, cada vez mais. Até os vampiros, zumbis e lobisomens convergem em um único monstro, zumbis inteligentes e rápidos, vampiros estúpidos que grunhem como lobisomens. É tudo o que eu tenho a dizer. Normais não sabem escrever, e eu ainda não sei o que é ser normal. Estou em fase de pesquisa empírica. Teremos de esperar pelo próximo sonho.

Mas até lá, eu tenho algo para contar sobre o que eu tomo pelo epítome da normalidade.

Minha família pode não ser o sonho americano, mas é composta majoritariamente por pessoas de bem. Médicos, engenheiros, economistas, advogados. Quando pensei em deixar o cabelo crescer e furar as orelhas eles me alertaram de desvios morais como a homossexualidade e a viadagem (absolutamente distintos), como qualquer família decente faria.

Imaginem então o meu horror quando começaram a exaltar a importância do exame de próstata nos jantares familiares. Old School, o famoso toque. Traído, esfaqueado (ou pior!) pelas costas... um coroinha pedofilizado.

O que seria esse abuso? Seria... uma cilada? Não seria tudo um teste de masculinidade – e assim que eu pusesse os pés dentro da sala de violação anal o proctologista riria de mim e me avisaria que eu não passei no teste?

Talvez isto não faça sentido, (salvo a parte da filantropia). Mas não sei, estou sóbrio demais.

É o sóbrio que se esconde na sua sobriedade e não o entorpecido que foge de qualquer coisa que seja: o entorpecido atravessa as paredes de vidro do real e cai sobre seus cacos dilacerantes. O sóbrio estupra o real, o louco transa com ele.

E quanto aos sonhos... talvez sejam eles um abismo entre o século e a eternidade. E, por agora, é neles que repousa minha confiança. Pois até agora, ser normal me parece reclamar, reclamar, e reclamar: mas deixar que façam com você aquilo que te parece o mais execrável em nome de princípios que você não entende mas defende com seus princípios castrados.

Que fique esta lição para vós, queridos filhos. Se pretendem lhes estuprar e a porta estiver destrancada, fujam. Melhor viver em abstinência do que em perpétuo estupro, isso eu lhes digo. O estupro perpétuo é lucrativo, eu concedo. Mas a abstinência simplesmente aparece melhor aos olhos de quem estiver lá pra ver, no mínimo com a cara colada no vidro e morrendo de medo de se machucar.

Segundo Sonho [30/01/2009]

Eu entro na sala do proctologista e não há proctologista algum. O meu tio mais bem humorado segura luvas de borracha e fica fazendo sinais obcenos me acusando de viadagem. Eu olho para a direita e meu pai coloca duas notas de 50 reais no bolso da frente de meu tio, claramente uma aposta que tinha perdido no momento em que entrei por aquela porta. Minhas tias consolam minha mãe, alertam para as vantagens dessa descoberta: ela não vai ter que dividir espaço com nenhuma outra.

Olho mais atentamente e vejo que minhas tias não estão mais consolando minha mãe, mas são meus tios que celebram a homossexualidade de suas filhas: não terão de se preocupar com um escroto como eles enfiando o membro não-circuncidado nas vaginas de suas preciosas crianças.

[O Terceiro dia de Normal – 31/01/2009]

Acordo um pouco agitado. Talvez toda esta história de ser normal tenha sido um erro. Não porque eu não sei o que é normal, mas porque eu devo admitir uma certa paixão pela picada do moscardo – e uma tendência infinita de me tornar o mais distante possível e imaginável de tudo isto. Mas só em sonho poderia eu alcançar tal façanha. Que o onipresente piromaníaco me proteja, mas talvez eu deva me botar pra sonhar por horas intermináveis, e escrever tudo o que daí vier. Talvez eu possa ser um normal acordado e ser picado pelo moscardo apenas ao abrigo de Morpheus.

Foi então que tomei a decisão de escrever uma aberração plena, às quais adicionarei um comentário subseqüente ao acordar. Entretanto, lhes aviso a vós, com o perdão do pleonasmo poético, meus queridos filhos: o entendimento é belo. Mas a beleza é superior ao entendimento, por uma simples questão de hierarquia de fins. O entendimento serve a muitas coisas, entre elas, à beleza. Não há distinção além de meia dúzia de rigores burocráticos entre qualquer forma de arte discursiva, salvo o que nos salta aos sentidos. E acho que já nem preciso comentar sobre o estupro que é classificá-las e distingui-las compulsivamente em sessões diferentes numa loja de produtos.

Se serve pra alguma coisa, não é vida e não é arte. Há pouco neste mundo que não sirva para nada, e é neste pouco que identificamos o que realmente importa: os fins últimos, aos quais todo o resto serve. Mas não caiam no velho truque do falso paradoxo. Ser intransigente quanto a não fazer da sua própria vida um instrumento de alguma coisa horrífica e abstrata não é o mesmo que ser intransigente no sentido de violentá-los com exames de próstata. Mas esqueçam da intransigência. Prefiram a dúvida. Isto é que é vida, isto é que é arte.
Os bons poetas queimam os próprios poemas, os maus os publicam e ganham dinheiro com frases que ficariam melhores mijadas na parede de sua vizinha escrota do que dentro de um conceito como beleza. No segundo em que qualquer coisa lhes parecer superior à sua arte (ou seja, que sua arte lhes sirva para alguma coisa) vocês morreram como artistas, bem como no momento em que vocês pautarem sua vida segundo determinada utilidade ou princípio vocês acabaram de se suicidar; não é permanente, felizmente. Vocês podem renascer de novo, depois de algum tempo sonambulando quase morto por aí. Nada, salvo a neutralidade plena, é irreversível. Nada do que importa pelo menos. Abdiquem dos abusos que cometerem e não se tornem os mais fervorosos defensores de suas palhaçadas (a menos que o façam com estilo).

Até lá, minhas crianças, façam bom proveito. E, na dúvida, Wikipédia e Google podem ajudar-lhes no medo do não entendimento. Um fantasma de entendimento que sirva no sentido contrário do medo dos termos desconhecidos me parece um bom é amigável fantasma.

Nenhum comentário: